Em discussões sobre ultraprocessados, é comum que a reformulação desses alimentos apareça como uma possível solução para reduzir seus efeitos nocivos à saúde. A ideia não é nova: há anos a indústria de alimentos atualiza a fórmula de seus produtos e estampa seus rótulos com alegações como “com adição de fibras”, “rico em vitaminas” ou “menos sódio”. Apesar disso, as consequências do consumo de ultraprocessados continuam sendo registradas pela ciência, sobretudo no aumento da prevalência de doenças crônicas (como diabetes ou hipertensão).

O argumento ressurgiu em um comentário dos pesquisadores americanos Deirdre Tobias e Kevin Hall, publicado em um fórum da revista científica Cell Metabolism. O texto teve resposta da epidemiologista Priscila Machado, em colaboração com outros três pesquisadores australianos. Priscila é integrante do Nupens e atua na Universidade Deakin, na Austrália.

Para seguir a conversa, é preciso dar um passo atrás e lembrar o conceito de alimento ultraprocessado. Basicamente, são formulações de substâncias derivadas de alimentos, contendo pouco ou nenhum alimento inteiro e tipicamente adicionadas de corantes, aromatizantes, emulsificantes e outros aditivos cosméticos. O ultraprocessamento destrói a matriz alimentar e, assim, exclui compostos bioativos (protetores da saúde), altera a biodisponibilidade de nutrientes (deixando o organismo menos propenso a absorvê-los), reduz a sensação de saciedade (são consumidos em maior quantidade) e até impacta a forma como comemos (horários e locais das refeições, por exemplo).

 

O problema da reformulação

“Frequentemente, as tentativas de reformulação de ultraprocessados focam em ingredientes específicos, mas não demonstram preocupação com a qualidade das substituições”, diz Machado. “Açúcar, por exemplo, é trocado por adoçantes artificiais, o que não traz ganhos à saúde”, exemplifica. Além disso, existe um limite tecnológico para a redução de alguns nutrientes: um ajuste na fórmula pode exigir a inclusão de ainda mais aditivos químicos para manter o sabor do alimento e o baixo preço de produção.

Esse tipo de mudança traz outra possibilidade danosa, que é a de legitimar e até promover o consumo de alimentos ultraprocessados com base nas alegações das embalagens. Um biscoito recheado sabor morango, mas com vitaminas adicionadas, passa a ideia de um produto nutricionalmente rico quando, na realidade, não contém nenhum traço da fruta.

 

O caminho para a alimentação saudável e sustentável: estimular o consumo de alimentos in natura e minimamente processados

Para a epidemiologista, uma política pública para melhorar o acesso à alimentação adequada e saudável não deve passar pela simples reformulação ou eliminação dos alimentos ultraprocessados. A saída é reduzir o consumo desses produtos ao mínimo possível, o que só pode ser feito se a questão for analisada para além dos nutrientes. “O aumento no consumo de ultraprocessados é um reflexo dos nossos sistemas alimentares. Isso inclui as práticas agrícolas (atualmente voltadas para a produção de commodities), a falta de regulamentação das iniciativas da indústria de alimentos e até a interferência da indústria nos poderes públicos”, analisa Machado.

A cientista acredita que, em vez de ultraprocessados, inovações tecnológicas poderiam ser usadas para tornar alimentos minimamente processados ou processados mais convenientes e baratos. Um exemplo desta tendência são as saladas, massas, queijos e iogurtes não ultraprocessados e prontos para consumo: são alimentos já vendidos em supermercados e restaurantes do mundo todo.

Leia a íntegra do comentário de Priscila Machado na revista Cell Metabolism (em inglês).