*Do Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas do Conselho de Segurança Alimentar Mundial da ONU
Os países não chegaram a um consenso durante a 49ª sessão plenária do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) das Nações Unidas sobre os resultados ou caminhos a se seguir após o fim da Cúpula de Sistemas Alimentares (UNFSS), realizada igualmente pela ONU. Por outro lado, é com profunda preocupação que a sociedade civil e os povos indígenas enxergam as implicações da UNFSS para o trabalho e mandato do CSA.
Durante sua participação na plenária do Comitê em nome do Mecanismo de Participação da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas, Jordan Treakle, membro da National Family Farm Coalition e da Via Campesina, afirmou que “o modelo de governança corporativa multissetorial incorporado e impulsionado pela Cúpula aprofunda os desequilíbrios de poder existentes entre os estados e enfraquece seu papel das Nações Unidas”.
Treakle ecoou a declaração política assinada por mais de mil organizações que representam pequenos produtores de alimentos, povos indígenas, ativistas da área de justiça alimentar e climática, pesquisadores e ONGs, denunciando como a UNFSS falhou em cumprir suas promessas.
A interferência da indústria sobre a Cúpula foi clara, refletida na estrutura e conteúdo do evento, de acordo com o novo relatório “Expondo a captura corporativa da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU por meio do multistakeholderism”. A pesquisa revela que as plataformas corporativas estavam e estão fortemente presentes na liderança do UNFSS e nas Linhas de Ação nas quais as soluções foram desenvolvidas.
Isso mostra que a Cúpula foi voltada para substituir o multilateralismo (no qual os governos tomam decisões e são responsáveis por elas como detentores de deveres) pelo multissetorialismo (multistakeholderism, em inglês) – uma prática de governança que evoca a ilusão de que todas as partes interessadas são iguais em seus direitos, capacidades e responsabilidades. Na verdade, a abordagem multissetorial ignora injustiças, desequilíbrios de poder e violações de longa data, aprofundando a desigualdade e a injustiça.
Na plenária do CSA desta semana, alguns países expressaram que o Comitê deve ter um papel importante no acompanhamento da Cúpula, ou corre o risco de se tornar irrelevante. Em adição, muitos enfatizaram que os resultados da UNFSS não foram negociados pelos Estados Membros e não deveriam dar origem a quaisquer novas estruturas. Alguns sugeriram que o fórum político do Painel de Especialistas de Alto Nível (HLPF) do Comitê seria um espaço mais apropriado para dar seguimento à UNFSS.
O Relator Especial sobre o Direito à Alimentação, Michael Fakhri, que esteve intimamente envolvido no desenrolar da Cúpula, advertiu que o processo da UNFSS marginalizou os direitos humanos e ignorou a questão mais importante da atualidade, a pandemia de Covid-19. O CSA, na opinião de Fakhri, seria melhor preparado a dedicar seus recursos e capacidade de coordenação para abordar os impactos devastadores da pandemia na segurança alimentar e nutricional.
A preparação da Cúpula ocorreu durante a pior pandemia que o mundo já experimentou em mais de 50 anos e um período de intensificação das catástrofes relacionadas ao clima. No entanto, o encontro não abordou as implicações sistêmicas de Covid-19 ou das mudanças climáticas e suas causas relacionadas: agricultura industrial, cadeias de abastecimento globais e concentração corporativa em sistemas alimentares.
“Com seu foco estreito em finanças, soluções tecnológicas caras e produtos e tecnologias de propriedade de empresas, os resultados da Cúpula irão exacerbar a desigualdade, a dívida, a expropriação e o extrativismo, especialmente no sul global, e minar ainda mais o fornecimento de alimentos em pequena escala do qual depende a maior parte da população mundial”, disse Treakle.
Durante a Plenária do Comitê de Segurança Alimentar, o Mecanismo da Sociedade Civil e Povos Indígenas reiterou suas objeções ao processo de coordenação proposto pela Cúpula, que irá acompanhar os resultados do encontro. O processo será liderado pela Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e o Programa Mundial de Alimentos (WFP).
Esta medida alteraria significativamente a arquitetura de governança global existente no setor de alimentos e agricultura com implicações de grande alcance, particularmente para o CSA.
Em vez disso, é momento do CSA provar sua força e cumprir seu mandato, tratando da interferência da indústria nos sistemas alimentares e na governança alimentar, que ocorre inclusive por meio de programas, plataformas e iniciativas financiadas pelo setor privado e filantrópicas corporativas como, por exemplo, a Aliança Global pela Melhoria da Nutrição (GAIN), EAT e Rede de Negócios do SUN. O Mecanismo da Sociedade Civil pede aos Estados Membros e ao CSA para que assumam seus papéis e responsabilidades seriamente, cumprindo suas obrigações em relação aos povos.
Mais informações
– Baixe o documento de briefing “ Expondo a captura corporativa da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU por meio do multistakeholderism”, em inglês
– Baixe os infográficos e as ilustrações
– Leia a declaração política “Não aos sistemas alimentares corporativos! Sim à soberania alimentar!”