Enquanto o Brasil foi vice-líder mundial na exportação de commodities agrícolas em 2020, também registrou no final do mesmo ano mais de 116 milhões de pessoas em insegurança alimentar, que têm acesso parcial ou nenhum à comida. Desse total, 19 milhões de brasileiras e brasileiros estão passando fome, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
Por outro lado, 26,8% da população adulta está convivendo com a obesidade – o que não significa que sejam pessoas bem alimentadas. São situações antagônicas: a falta de acesso a alimentos e o excesso de consumo de produtos não saudáveis. Vivemos a junção das epidemias da obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, que se inter relacionam e retroalimentam.
Nas últimas décadas, a ciência mostrou e documentou as consequências que modelos agrícolas convencionais causam nos recursos naturais, na biodiversidade e na saúde das pessoas – além de contribuir diretamente para a elevação das temperaturas globais.
Ao promover o desmatamento, a monocultura de commodities e o uso intensivo de agrotóxicos, os Sistemas Alimentares atuais ditam a lógica produtiva no campo, transformando a terra em um chão de fábrica que produz em escala industrial. Os sistemas alimentares não têm sido capazes de promover saúde e respeitar o meio ambiente.
O relatório “The state of food and agriculture”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) revelou em 2016 que, no mundo, a agricultura e o uso da terra contribuíram para, no mínimo, 20% das emissões de gases de efeito estufa, principalmente da conversão de floresta em área de pasto e agricultura.
Em 2019, segundo relatório do Observatório do Clima, as mudanças de uso da terra para agricultura no Brasil, com destaque para o desmatamento na Amazônia e no Cerrado para abertura de novas áreas plantáveis, somaram 44% do total de emissões domésticas de GEEs. Entre todos os setores, como indústria, energia e comércio, esta representa a maior parcela de contribuição para o câmbio climático.
Ainda, se somarmos os setores da agricultura e da pecuária, este casamento corresponde, entre 1990 e 2018, a uma média de 80% do total de emissões no Brasil.
As consequências promovidas por esta lógica de negócio são sentidas no mundo inteiro. E estas mesmas consequências voltam para impactar fortemente o próprio setor da agricultura, que é o que mais perderá produtividade com o acirramento das mudanças climáticas.
A agricultura já sente as consequências de períodos mais longos e frequentes de estiagem e seca, aumento e maior variabilidade das temperaturas, alterações no padrão de chuvas e o aumento da intensidade de eventos climáticos extremos, como enchentes, secas e elevação do nível do mar. Esta queda esperada de produtividade impactará diretamente a insegurança alimentar em um país que sente terríveis efeitos da fome.
Economicamente falando, os recordes seguidos de safra e produção do agronegócio brasileiro, que em 2020 representaram 26% do PIB brasileiro, devem ser impactados fortemente pelas mudanças climáticas. Em escala global, as estimativas das perdas econômicas futuras causadas pelas mudanças climáticas são de até 18% do PIB mundial, segundo pesquisa do Swiss Re Institute.
Trata-se, afinal, de um Sistema Alimentar que está se auto sabotando: ao bater recordes de safra atrás de recordes, contribui para as mudanças climáticas e assim, contribui para seu próprio fim.
Um modelo diferente
Vivemos hoje uma sindemia global causada pelas altas taxas de obesidade, desnutrição e pelas mudanças climáticas. Este é o maior desafio atual para a sociedade, o meio ambiente e o planeta. Enfrentá-lo passa invariavelmente por uma transição profunda não apenas na lógica de se usar a terra e produzir alimentos, mas de transportar, distribuir, comercializar, e consumi-los.
Ao setor agrícola, cabe a responsabilidade de reduzir radicalmente as emissões de GEEs por meio, por exemplo, da recuperação de 72 milhões de hectares de pastagens em estado agudo de degradação no Brasil. A medida diminuiria sensivelmente a pressão para a abertura de novas áreas e evitaria prejuízos anuais em torno de R$ 9,5 bilhões aos produtores, segundo o Instituto ClimaInfo.
A perda de biodiversidade no Brasil tem escala continental. Segundo o 1º Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmico, resta apenas 26% da cobertura vegetal dos Pampas, 28% da Mata Atlântica e 55% do Cerrado, sendo estes os três biomas mais afetados.
Isto prejudica a capacidade ambiental de retenção de carbono, alterando a regulação climática, e afeta a habilidade e a manutenção da produção de oxigênio atmosférico, a formação e retenção de solo, a ciclagem de nutrientes, fornecimento de água e energia, entre outros. Também significa a perda de incontáveis espécies vegetais e animais, com potencial de uso medicinal e alimentar, além de relevância incalculável.
À reboque do desmatamento e abertura de novas áreas produtivas, o setor agrícola aposta no uso intensivo de agrotóxicos. De acordo com o diagnóstico, nos últimos dez anos a aplicação dos chamados defensivos agrícolas aumentou 190%.
Esta prática causa a contaminação dos cursos d’água, o esgotamento do solo, a perda de biodiversidade e promove consequências na saúde das pessoas, como documentou a Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
Para além de mitigar estes processos danosos, uma agenda de transição de sistemas deve considerar o investimento e valorização das dinâmicas e negócios que possibilitam um uso adequado dos elementos naturais. Nesse sentido, diferentes estudos ressaltam o papel essencial dos povos tradicionais e da agricultura familiar como atores com conhecimentos e práticas alinhadas com o uso sustentável da biodiversidade.
Todas estas iniciativas, fundamentais não apenas para a manutenção da produtividade econômica, mas da vida neste planeta, cabem dentro de uma agricultura e de um Sistema Alimentar que semeia mais justiça, igualdade e saúde.
Cúpula para quem?
A primeira Cúpula dos Sistemas Alimentares da história, organizada pela ONU, está marcada para setembro, com um evento prévio de 26 a 28 de julho em Roma, na Itália. Esta seria uma oportunidade importante para avançar em uma agenda de transição de modelos se não fosse pela captura corporativa a qual o evento está submetido.
Entre um dos principais motivos para não se reconhecer legítima esta cúpula é a indicação de Agnes Kalibata para chefiá-la, figura notadamente conhecida por seus laços com o agronegócio no continente africano. Ela faz parte da Aliança para a Revolução Verde na África (AGRA) e mostra dificuldade em reconhecer a importância e os direitos dos pequenos produtores nos sistemas alimentares.
A sociedade civil organizada, por meio do Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas para relações com o Comitê das Nações Unidas sobre Segurança Alimentar Mundial, irá promover um evento paralelo para desafiar o fórum.
Para dar voz aos atores que fazem parte dos Sistemas Alimentares, mas ficaram de fora deste espaço tomado pelo corporativismo, a sociedade civil promoverá a Contra-Mobilização Global dos Povos para transformar os sistemas alimentares corporativos entre os dias 25 e 27 de julho, com uma etapa na América Latina entre os dias 22 e 23. Serão espaços de resistência, para demandar e propor uma agenda de transição para Sistemas Alimentares sustentáveis e saudáveis.
Acesse aqui o posicionamento do Idec sobre a Cúpula dos Sistemas Alimentares 2021.