O relator-especial sobre direito à alimentação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) Michael Fakhri, criticou a ausência de temas relacionados à pandemia de Covid-19 na pauta da Cúpula de Sistemas Alimentares, que será realizada em 23 de setembro.
“O grande e mais substancial problema com a Cúpula é que ela vai encaminhar propostas de como transformar os sistemas alimentares mundiais ignorando o fato de que estamos em meio a uma pandemia global”, disse Fakhri ao apresentar o resumo do relatório formulado por ele sobre a Cúpula.
Além de relator-especial, ele acumula outras duas funções: é membro do time de integração da Cúpula de Sistemas Alimentares e do Comitê de Segurança Alimentar (CFS), ambos da ONU. Autorizado portanto pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas a ser seu representante independente a questionar questões de segurança alimentar e nutrição na Cúpula, Fakhri usou de seu espaço de fala durante o pré-evento, realizado em julho, em Roma, para expor sua análise.
“No último um ano e meio, Covid-19 não esteve na agenda da Cúpula de maneira substancial. Isso significa que grande parte da Cúpula é construída sobre uma fantasia, na qual a Covid-19 e a atual crise alimentar magicamente desaparecem”, afirmou Fakhri.
A programação da pré-cúpula não dedicou nenhuma sessão à pandemia de Covid-19, apesar de suas consequências nos meios de subsistência das pessoas e de toda cadeia de abastecimento alimentar global.
O relator fez igualmente duras críticas às corporações, à própria organização do fórum e destacou o desequilíbrio de poder entre sociedade civil e empresas nas discussões sobre o futuro dos sistemas alimentares.
Ele aponta que o grande problema dos sistemas alimentares hoje é que as corporações têm um enorme poder de influência e elas são as grandes responsáveis pelos problemas que enfrentamos.
“A alta concentração de poder corporativo em nossos sistemas alimentares permite que um grupo pequeno de pessoas modele mercados de uma forma que maximize os lucros em detrimento do bem-estar social”, destacou o relator-especial. “Leis corporativas permitem que estes indivíduos colham todos os ganhos e não sejam responsáveis por qualquer dano social gerado pelos seus negócios de gerar lucro”.
E foi taxativo: “Os sistemas alimentares atuais marginalizam os direitos humanos”.
Durante seu discurso, o relator-especial ainda lembrou que mais de 300 organizações da sociedade civil se mobilizaram para promover a Contra Mobilização dos Povos para transformar os Sistemas Alimentares Corporativos, evento global que contou com a participação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Para Elisabetta Recine, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (OPSAN) da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília e integrante do Alto Painel de Especialistas (HLPE) do Comitê de Segurança Alimentar da ONU, a fala do relator-especial, na ocasião da Pré-Cúpula de Sistemas Alimentares, é relevante por expor a dominância do poder das empresas e a falta de participação e reconhecimento do conjunto de propostas concretas das organizações de interesse público e movimentos sociais na construção dos futuros sistemas alimentares.
“A manifestação do ACNUDH, por meio do sr. Fakhri, é importantíssima por sua clareza em apontar os limites estruturais do processo da Cúpula e, portanto, do risco real de aprofundamento dos determinantes que nos levaram a uma situação de crise climática e alimentar global. Não há expectativas que a redução da dívida histórica para o cumprimento do Direito Humano à Alimentação Adequada de importantes parcelas das populações dos países seja reduzida pelas propostas da Cúpula”, afirma Recine.
Recomendações
Em seu relatório, Michael Fakhri recomenda ações importantes para devolver o debate sobre sistemas alimentares à sociedade civil e não às corporações, fortalecendo o direito à alimentação e os direitos humanos em geral. Abaixo, um resumo dos principais pontos feito pelo Idec:
- Fortalecer mecanismos de monitoramento e responsabilização das corporações que compõem os sistemas alimentares hegemônicos;
- Valorização do conhecimento local e tradicional;
- Repensar com urgência a incorporação dos direitos humanos nos resultados da Cúpula e abordar as questões pendentes sobre poder, participação e cumprimento de metas;
- Os Estados Membros devem se mobilizar e avaliar a Cúpula através dos sete princípios PANTHER (participação, responsabilidade, não discriminação, transparência, dignidade humana, empoderamento e Estado de Direito), destacando que os Estados é que têm a maior responsabilidade de governança no interesse público;
- Recomenda-se o fortalecimento dos fóruns multilaterais da ONU existentes em Roma e Genebra para acompanhamento e revisão. O Comitê de Segurança Alimentar deve ser o espaço onde os resultados da Cúpula são finalmente discutidos e avaliados, destacando que o Comitê conta com o Mecanismo da Sociedade Civil inclusivo e representativo;
- Todas as coalizões construídas devem ser responsivas aos países e às demandas regionais, enfocando os direitos humanos e abordando as prioridades transversais de equidade, capacitação e prestação de contas nos sistemas alimentares;
- Os resultados da Cúpula devem ser avaliados por meio de uma perspectiva de direitos humanos. Isso envolve questionar se as propostas da Cúpula irão realizar os direitos das pessoas à alimentação e os direitos humanos em geral.
Acesse o relatório na íntegra, disponível em inglês.