Idec participa da Contra Mobilização dos Povos para transformar os Sistemas Alimentares Corporativos

Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor contribuiu para organização da etapa dedicada para América Latina e compôs mesa de debate do evento global da sociedade civil

2 de agosto de 2021
(ATUALIZADO_EM 9 de março de 2023)

Entre os dias 25 e 28 de julho, o Idec participou da primeira Contra Mobilização dos Povos para Transformar os Sistemas Alimentares Corporativos, um evento realizado em forma de crítica e resistência à Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas, que ocorreu nos mesmo período, em Roma. Dias antes do encontro mundial, em 22 e 23 de julho, foi realizada uma etapa prévia para a América Latina com apoio do Instituto. 

“Estamos trabalhando em um processo muito articulado com este movimento para a construção de uma agenda para Sistemas Alimentares mais saudáveis e sustentáveis na América Latina e no Brasil. Fazemos incidência política nos países, governos e instituições. Estamos fazendo isso porque acreditamos na soberania alimentar dos povos”, disse a coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Janine Coutinho.

O movimento é resultado da união de mais de 300 organizações da sociedade civil de todo o mundo para enfrentar os modelos de produção e consumo de alimentos dominados por grandes corporações da indústria alimentícia e do agronegócio. Com uma programação ampla, participaram campesinos, pequenos produtores, povos indígenas e tradicionais, consumidores e gestores públicos. 

O evento foi transmitido online. Os encontros foram realizados a partir da organização e mobilização de movimentos, organizações e comunidades que compõem outros modelos de  Sistemas Alimentares. Abordou-se o tema sob a ótica dos direitos humanos e da coexistência com a natureza, ao contrário do discurso voltado para a produtividade e lucro do agronegócio e da indústria de alimentos.

O Idec não participou oficialmente do evento da ONU após denunciar a captura corporativa sob a qual este está submetido, assim como o não respeito à autodeterminação para para definição da representação da sociedade civil e a falta de transparência nos critérios de escolha e diversidade no comitê científico da Cúpula.

A luta pela soberania alimentar 

A agenda da Contra Mobilização dos Povos para transformar os Sistemas Alimentares foi pensada com o objetivo de refletir as demandas, saberes e experiências da sociedade civil. Por isso, o primeiro dia foi dedicado a oito horas ininterruptas de apresentações culturais  de diferentes organizações e comunidades e falas de resistência. 

Nos dias seguintes, uma série de diálogos foram promovidos em sessões independentes e, ao fim, um ato de encerramento marcou a união dos povos contra os Sistemas Alimentares corporativos. Confira aqui como foi a programação completa.

Convidado para integrar a mesa A Luta pela Soberania Alimentar no Caribe e América Latina no dia 27, o Idec levou para o fórum global a perspectiva dos consumidores, dando destaque à agenda do consumo de alimentos saudáveis.

“Mais de 19 milhões de brasileiros enfrentam a fome todos os dias. É um cenário crítico que está embasado nas crises política, econômica e sanitária que o Brasil vive – e na forma em que os alimentos estão sendo produzidos, processados, comercializados e consumidos”, defendeu Janine.

Segundo ela, é preciso fortalecer os esforços para promover e defender o Guia Alimentar para a População Brasileira, defender a rotulagem de alimentos, denunciar os perigos do consumo de agrotóxicos e ultraprocessados e construir caminhos para combater a sindemia global caracterizada pela desnutrição, obesidade e mudanças climáticas.

Agenda da América Latina

Durante a etapa latinoamericana, foi possível mapear as principais preocupações, desafios e demandas da sociedade civil na região em relação aos Sistemas Alimentares. Do encontro, produziu-se um manifesto com o posicionamento das entidades da América Latina para a mobilização global.

“O modelo em que vivemos está esgotado e busca desesperadamente se renovar e resolver os graves problemas de sustentabilidade e injustiça. Buscam soluções que não resolvem os problemas, mas que acalmem os protestos sociais”, pontuou Sofía Monsalve, da FIAN International (Food First Information and Action Network) e integrante do Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas para as relações com o Comitê das Nações Unidas sobre Segurança Alimentar Mundial.

A agenda incluiu mesas de debate sobre falsas soluções tecnológicas, ameaças da agricultura industrial contra a biodiversidade e os direitos humanos, as lutas populares e resistências regionais, conflitos de interesse nos Sistemas Alimentares, consumo saudável e sustentável, direitos territoriais, tradicionalidades, entre outros.

As vozes dos povos

Confira as falas de alguns dos participantes da Contra Mobilização dos Povos para transformar os Sistemas Alimentares:

Jennifer Clapp, Comitê-Diretivo do Alto Painel de Especialistas (HLPE) do Comitê de Segurança Alimentar da ONU

“A maior parte do que é feito na agricultura é financiado pelo setor privado. E a produção de dados é financiada pelo setor privado. Existe a necessidade urgente de investimentos públicos no setor.”

Victor Súarez Carrera, Vice-Ministro de Autossuficiência, Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural do México

“É inaceitável que estejam tentando privatizar as soluções públicas na Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU. E eles querem impor isso na sociedade. Não podemos perder muito tempo desafiando a Cúpula da ONU, precisamos agora criar e seguir a nossa própria agenda. Precisamos criar espaços de múltiplos interessados [multistakeholders] da base, a partir das pessoas.”

Svetlana Boincean, Organização Sindical Internacional Alimentar, Agrícola, Hotelera (UITA)

“Mais de 500 organizações enviaram uma carta para o Secretário-Geral da ONU em março de 2020 levantando nossas preocupações em relação à Cúpula de Sistemas Alimentares. Como resposta, a gente recebeu nada mais do que um convite para participar.”

Paula Gioia, La Vía Campesina Alemanha

“O processo da Cúpula dos Sistemas Alimentares foi pensado desde o início para servir uma agenda corporativa. Como os governos aceitam ter sua autoridade e soberania tomadas pela indústria?”

Ali Aii Shatu, Indigenous Peoples of Africa Coordination Committee (IPACC)

“Os sistemas alimentares são pensados para dar poder às empresas e não às pessoas.”

Alejandro Calvillo, El Poder de Consumidor – México

“No último ano, o crescimento da venda de ultraprocessados nos EUA foi menor que 1%. Mas no México, passou de 3%. Os produtores estão produzindo alimentos para ultraprocessados, que por sua vez já não são nem alimento.”

Jim Thomas, Grupo ETC – Canadá

“Os modelos atuais requerem que as pessoas saiam de seu caminho. A solução que estes sistemas propõem são tecnológicas e não envolvem as pessoas. Os Sistemas Alimentares estão virando Sistemas de Dados, que se baseiam em vigilância, controle e automação. Os donos dessas tecnologias terão mais acesso aos dados das plantações do que o próprio produtor.”

Zoltán Kalmán, embaixador aposentado e ex-representante permanente da Hungria junto às agências de alimentação e agricultura da ONU em Roma

“A Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU é um perigo para a neutralidade da ciência. Informação, dados, isto é poder. Mas quem é dono destes dados?”

Tammi Jonas, Aliança pela Soberania Alimentar da Áustria

“As soluções propostas pelas indústrias vão propor alimentos saudáveis para nós? Precisamos manter as pessoas e as famílias camponesas no centro da lógica da produção no campo.”

André Luzzi de Campos, Habitat International Coalition (HIC)

“Precisamos reconhecer que nós, como sociedade, somos as vozes legítimas dos interessados no processo de pensar Sistemas Alimentares. Precisamos assegurar a soberania alimentar por meio das pessoas, integrar a agroecologia aos Sistemas Alimentares e parar de transformar alimentos em commodities.”

Jomo Kwame Sundaram, ex-assistente para Assuntos Econômicos do Secretário-Geral das Nações Unidas – Malásia

“A Cúpula de Sistemas Alimentares precisa concordar que o único caminho possível para avançar é a agroecologia, o que envolve pesquisa, compartilhamento de conhecimento e colaboração entre produtores e cientistas.”

Onel Masardule, Diretor Executivo da Fundação para a Promoção do Conhecimento Indígena no Panamá

“Com financiamento independente, podemos realmente comunicar os resultados para a base. No Panamá e na Guatemala, conseguimos comunicar a resiliência da produção dos povos indígenas. As ações estão vindo diretamente dos movimentos de base.”

Nzira Deus, Marcha Mundial pelas Mulheres

“Representando as jovens e mulheres produtoras do campo, é muito importante para nós destacarmos que os jovens foram marginalizados no processo de organização da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, nossas vozes não foram ouvidas.”

Jesús Vázquez Negrón, La Vía Campesina Caribe

“A agroecologia é a chave para a conquista da soberania alimentar. Os sistemas alimentares do mundo devem estar nas mãos das pessoas. São as pessoas que precisam se beneficiar deles.”

Janine Coutinho, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

Para combater a sindemia global causada pelas pandemias de fome, obesidade e mudanças climáticas, é necessário fomentar uma alimentação mais saudável, frear o consumo dos produtos ultraprocessados e priorizar uma agricultura justa, limpa, baseada na agroecologia. Para isso é preciso ter uma ação coordenada, focada na formulação de política e direitos humanos.”

Lieser Ramírez, Associação de Jovens Empreendedores da República Dominican

“As políticas neoliberais de livre mercado destroem os sistemas alimentares e não têm contribuído em nada com o combate à fome no mundo, pelo contrário: reforçaram a dependência das pessoas de produtos exportados e processados.”

Isa Álvarez, Urgenci – França

“Investimentos públicos não foram capazes de apoiar os tipos de produção que geram alimentos para as famílias. E são modelos que já provaram ser capazes de alimentar as pessoas, como a agroecologia. Precisamos considerar a agroecologia como a resposta real para a transformação de sistemas.”

Mary Mubi, ex-Representante Permanente do Zimbábue para a FAO

“A importação de alimentos de outros países faz com que as pessoas não comam comida produzida localmente. Precisamos popularizar a safra indígena e dar assistência fornecendo informação.”

Sofia Monsalve, FIAN International

“O sistema atual não responde às necessidades das pessoas em situação de insegurança alimentar. Temos que achar forças para lidar com as regulamentações e tirar a ideia de commodities dos sistemas alimentares.”

Nettie Wiebe, La Vía Campesina Canadá

“A abordagem da produção agroecológica como um todo é empoderar as pessoas, oferecendo conhecimento e promovendo direitos. Diversidade é fundamental para a democracia.”

Elisabetta Recine, Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (OPSAN) da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília

Reduzir o conhecimento que precisamos sobre sistemas alimentares aos aspectos tecnológicos e econômicos é um sério reducionismo. Esta visão aprofunda as desigualdades e perpetua a visão de que a natureza e as pessoas estão a serviço dos interesses de uns poucos.

Jones Spartegus, Fórum Mundial dos Povos sobre Pesca – Índia

“O conhecimento tradicional precisa ser reconhecido. É aí que mora o conflito de interesses.”

Cecilia Rikap, Sistema Público de Pesquisa da Argentina (CONICET)

“Vamos escolher produzir alimento ou prestar um serviço de exportação de recursos naturais para arrecadar mais dólares? Para transformar o sistema, precisamos de conhecimento. E conhecimento é produzido sobre mais conhecimento. Mas quanto este é privatizado, não nos sobra acesso e oportunidade para produzir ciência.”

Hernando Salcedo Fidalgo, FIAN Colômbia

“A Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU só vê uma opção de Sistema Alimentar: o modelo agroindustrial. E é precisamente este modelo que estabelece vínculos com o uso de agrotóxicos, com a mortalidade por má nutrição, que se torna comorbidade para COVID-19, e com o desequilíbrio de sistemas.”

Marlen Sánchez, La Vía Campesina Caribe

“Sustentamos esta luta pelo nosso território porque sabemos que não dá para fazer agroecologia sem território.”

Molly Anderson, Coletivo Internacional de Pesquisa e Ação Agroecológica

“Queria ressaltar a importância da formação, principalmente trazendo jovens para a agroecologia. É comum os jovens não quererem ir trabalhar no campo e se especializar na agricultura. Mas as crianças estão muito interessadas em saber sobre agroecologia e a preservar o ambiente ao invés de destruí-lo.”

Pramesh Pokharel, Federação de Camponeses de Todo o Nepal (ANPFA), membro do Comitê de Coordenação Internacional da Vía Campesina

“A formação de escolas, especialmente agroecológicas, escolas politizadas, é muito importante para a construção de Sistemas Alimentares. Assim, podemos ter pessoas prontas para responder à crise alimentar que enfrentamos e a muitas outras crises, como mudanças climáticas, fome, obesidade, só para citar algumas.”

Mateus Costa Santos, La Via Campesina África

“Nós temos as soluções, a começar pela agroecologia. O que é preciso é investimento público que promova essas soluções. A voz da sociedade civil foi ouvida e ela disse basta!”

Tyler Short, La Via Campesina América do Norte (Canadá e EUA)

“Quando olhamos para a pandemia atual de COVID-19, nós vemos um momento e uma oportunidade para os movimentos de base proporem mudanças de longo prazo nos Sistemas Alimentares.”

Corina Munoz, Marcha Mundial pelas Mulheres, processo América Latina

“Hoje nos dizem o que produzir, como produzir e o que comer. Seguimos sob a lógica colonial. Os países mais pobres seguem sendo influenciados pelos mais ricos neste sentido.”

Shalmali Guttal, Focus Sul Global

“Precisamos limitar aumentar o controle sobre as corporações, precisamos de regulamentações fortes e priorizar o interesse público. Devemos vincular os sistemas alimentares às culturas alimentares, não separá-lo da nossa sociedade.”

Jordan Teakle, Coalizão Nacional de Produção dos Estados Unidos 

“Na prática, estamos a menos de dois meses da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU. É hora de termos visão das análises e estratégias políticas contra eventos. Temos que ampliar essa aliança. Este é o momento de engajarmos nossos representantes eleitos.”

Saul Vicente, Conselho do Tratado Internacional do Índio, em nome do Comitê Internacional de Planejamento sobre Soberania Alimentar

“Quiseram nos enterrar para que desaparecêssemos, mas não sabiam que nós éramos sementes.”

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