Consumir ultraprocessados não combate a fome, mas agrava crise socioambiental

Conectar o consumo de alimentos altamente industrializados a danos à saúde das pessoas, ao meio ambiente e ao clima é essencial para transformar os Sistemas Alimentares

20 de agosto de 2021
(ATUALIZADO_EM 9 de março de 2023)

Frente aos desafios econômicos impostos pela pandemia de covid-19, muitas famílias brasileiras perderam a renda e a segurança de poder se alimentar dignamente. Durante este período, o consumo de ultraprocessados aumentou no país, segundo pesquisa Datafolha contratada pelo Idec, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.

São produtos baratos, de fácil acesso, o que colabora para este cenário. Enquanto o preço dos alimentos básicos dos brasileiros – como arroz e feijão – sobe, resta aos 116 milhões de pessoas no Brasil em insegurança alimentar opções acessíveis de salgadinhos, refrigerantes, comidas prontas congeladas, bolachas, bebidas açucaradas, entre outros produtos ultraprocessados.

Trata-se de fórmulas químicas e não alimentos de verdade, que são reconhecidamente prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. São produtos que contêm, em grande quantidade, nutrientes associados a doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade e doenças cardiovasculares. Logo, consumir mais ultraprocessados significa mais impactos negativos na saúde da população. 

O estudo “Tem Veneno Nesse Pacote”, publicado em junho pelo Idec, revelou a presença de agrotóxicos em quase 60% dos produtos ultraprocessados testados e a presença de glifosato ou glufosinato em mais de 50% deles. Em 2015, a OMS (Organização Mundial da Saúde) concluiu com base em centenas de pesquisas que o glifosato é “provavelmente carcinogênico” para humanos.

Ainda em junho, o Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP) e a Cátedra Josué de Castro divulgaram extensa publicação que conta com mais de 180 evidências científicas que comprovam os impactos negativos do consumo de ultraprocessados na saúde humana e do planeta.

Ignorando estes riscos, empresas da indústria alimentícia aproveitam o momento de pandemia para promover ações solidárias de doação de cestas alimentares e melhorar sua imagem frente ao público. 

Assim, doam ultraprocessados para famílias em situação de vulnerabilidade. Iniciativas como essas normalizam o consumo destes produtos nocivos e ainda mais, posicionam tais empresas como referência em ajuda humanitária, quando, na verdade, estão colaborando para o adoecimento da população e do planeta.

“É urgente que o governo tome medidas estruturais para combater a fome e a insegurança alimentar que foi aprofundada com a covid-19”. A população tem direito de ter acesso a alimentos saudáveis, como explica a coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Janine Coutinho. “O  consumo de alimentos ultraprocessados está relacionado a doenças crônicas como diabetes, pressão alta, e excesso de peso, aumenta-se o risco de comorbidades e de formas mais graves da covid-19, aumentando assim o risco  de mortalidade”.

O planeta sofre

Enquanto o consumo de ultraprocessados pode ser conectado com a fragilização da saúde da população, é importante ressaltar que padrões alimentares baseados neste tipo de produto também provocam graves consequências para o meio ambiente.

A produção de ultraprocessados está atrelada à perda da biodiversidade, uma vez que empresas alimentícias que investem neste tipo de produto induzem a uma redução do número de espécies vegetais de alta produtividade (como soja, milho e trigo), que vão garantir produção em larga escala, e acaba estimulando os sistemas agrícolas que são mais intensivos em relação ao uso do solo e baseados em monocultura.

Por outro lado, este é um setor que influencia diretamente no aumento do uso de embalagens e resíduos sólidos. Segundo estudo da Nupens e Cátedra Josué de Castro, apenas 9% dos resíduos plásticos produzidos até 2015 foram reciclados ou reaproveitados no mundo.

Em ambas as frentes, com perda de biodiversidade e intensificação da geração de lixo, as consequências recaem diretamente sobre o aumento das emissões de gases de efeito estufa, colaborando para as mudanças climáticas. 

Sistemas alimentares saudáveis e sem ultraprocessados

Para garantir modelos alimentares justos, que combatam de fato a fome promovendo mudanças estruturais da maneira de se produzir, usar a terra e ofertar alimentos, é preciso regulamentar os produtos ultraprocessados.

Uma das maneiras de fazer isso é promover o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde e que tem o apoio do Idec. O material traz pontos necessários para a transição de Sistemas Alimentares e utiliza recomendações claras e diretas sobre quais alimentos devem fazer parte de uma alimentação saudável e quais devem ser evitados para impedir danos à saúde.

“Além de apoiar na educação da população, os guias alimentares são importantes fontes de subsídio para a formulação de políticas públicas e medidas regulatórias que incentivem o consumo de alimentos saudáveis”, defende Janine Coutinho.

A rotulagem de alimentos é outra importante frente de trabalho. Segundo Janine, “para termos sistemas alimentares saudáveis, precisamos implementar novas normas nutricionais de rotulagem que contribuam para classificar quais alimentos devem ser evitados, além de restringir a publicidade que estimula o consumo desses produtos”.

Neste sentido, é possível desestimular a oferta e venda de ultraprocessados, desbancando estes produtos como solução para a fome e expondo seu caráter nocivo à saúde das pessoas e do planeta. Esta é uma das demandas da sociedade civil frente à Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, que acontecerá no fim de setembro.

Entenda as demandas da sociedade civil e “A necessidade de remodelar o processamento global de alimentos: uma chamada para a Cúpula dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas”, estudo científico internacional liderado pelo professor Augusto Carlos Monteiro, do Nupens, disponível em inglês.

(Foto: iStock / fcafotodigital)

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